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Moda e Neurodivergência

  • Foto do escritor: Karine Padilha
    Karine Padilha
  • 1 de set.
  • 6 min de leitura

Muito mais do que um conjunto de roupas. A moda é linguagem, identidade, pertencimento. Quando escolhemos o que vestir, comunicamos quem somos  ou, ao menos, como desejamos ser vistos. Mas e quando decifrar esses códigos não é tão simples? 


Para muitas pessoas neurodivergentes, o ato de se vestir vai muito além de estilo ou tendências: ele pode se transformar em um verdadeiro desafio social, emocional e até sensorial.


Dificuldade na leitura de pistas sociais: dificuldade para compreender o que cabe em cada ocasião

A moda, além de expressão individual, é um sistema de comunicação não verbal. De acordo com Barnard (2002), as roupas funcionam como signos que transmitem mensagens sobre identidade, status, afiliação a grupos e intenções. No entanto, captar essas mensagens exige habilidades de leitura social, que estão frequentemente associadas ao processamento implícito de normas sociais, algo que pode ser mais difícil para pessoas neurodivergentes (Lai et al., 2014). Um vestido elegante em um jantar, por exemplo, pode sinalizar sofisticação, poder, feminilidade ou até apenas praticidade. Essa multiplicidade de significados depende do contexto, das intenções e da percepção do grupo social. A psicologia social chama esse fenômeno de pragmática social, isto é, a habilidade de compreender não apenas o que é dito (ou mostrado), mas o que é intencionalmente comunicado em um contexto (Sperber & Wilson, 2002).


Para pessoas autistas, compreender essas nuances pode ser desafiador devido a diferenças no que se chama de teoria da mente, a capacidade de inferir estados mentais e intenções de outras pessoas (Baron-Cohen, 2000). Já indivíduos com TDAH podem ter dificuldade em funções executivas, como planejamento e antecipação de expectativas sociais (Barkley, 2015), o que impacta a escolha do vestuário em situações formais ou novas.


Essa dificuldade se estende ao entendimento das próprias ocasiões. O que significa estar “adequado” para uma entrevista de emprego, para um casamento ou até para um simples café com colegas? Muitas vezes, essas regras não estão escritas, mas funcionam como normas sociais implícitas, convenções partilhadas por um grupo sem que precisem ser explicitamente enunciadas (Cialdini & Trost, 1998). A insegurança diante dessas regras invisíveis pode transformar o momento de se vestir em um exercício de ansiedade, especialmente quando a percepção de “errar” pode trazer consequências sociais negativas, como exclusão, julgamento ou estigmatização.


Esse cenário também se relaciona ao conceito de camuflagem social, ou masking, observado em muitas pessoas autistas. Trata-se da tentativa de imitar ou reproduzir comportamentos considerados socialmente aceitos, mesmo sem compreendê-los totalmente (Hull et al., 2017). No caso da moda, isso pode significar copiar estilos ou seguir rigidamente manuais de etiqueta, mas com alto custo de energia mental e emocional.


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Busca de pertencimento e Masking

Somado a isso, há o ritmo acelerado da indústria da moda. A cada estação, novas tendências surgem e desaparecem com a mesma rapidez. Esse ciclo, profundamente conectado à monetização e ao consumo, pode soar caótico para quem prefere a constância, a funcionalidade e o conforto. Tecidos que irritam a pele, etiquetas incômodas ou costuras rígidas não são detalhes triviais para muitos neurodivergentes: são gatilhos sensoriais que podem tornar certas peças simplesmente inviáveis. Estudos sobre processamento sensorial em pessoas autistas demonstram que a hipersensibilidade a estímulos táteis é um fator determinante na escolha do vestuário (Robertson & Baron-Cohen, 2017).


A pressão para acompanhar esse mercado, ao mesmo tempo, pode reforçar uma sensação de exclusão e não pertencimento, como se não houvesse espaço para quem pensa e sente a moda de forma diferente. É nesse ponto que surge um fenômeno talvez ainda mais delicado: o masking. Conhecido nos estudos sobre autismo, masking é o ato de se camuflar para não destoar. No universo da moda, isso significa vestir roupas que não refletem quem se é, apenas para evitar julgamentos. É o salto alto que machuca, mas passa credibilidade; a camisa engomada que sufoca, mas garante respeito; ou o vestido discreto usado apenas para não “errar” no olhar alheio. Essa prática pode até facilitar a aceitação social momentânea, mas custa caro em termos emocionais. Vestir-se como uma versão de si mesmo que não existe é uma forma de desgaste que se acumula com o tempo, e pesquisas mostram que o masking está associado a maiores níveis de ansiedade, depressão e burnout em pessoas autistas (Hull et al., 2017).


TDAH, busca dompaminérgica e conceito da permanência: compras impulsivas e acúmulo

Os desafios não param por aí. A moda, quando atravessada pela neurodivergência, também conversa com aspectos mais sutis do funcionamento cerebral. No caso do TDAH, por exemplo, há uma busca dopaminérgica aumentada, que pode se traduzir em compras impulsivas. O ato de adquirir uma peça nova traz uma descarga de prazer imediato, resultado da ativação do sistema de recompensa, mas esse prazer é muitas vezes passageiro. Como consequência, o guarda-roupa acaba se enchendo de itens pouco usados (Wilens & Spencer, 2010).


Outro ponto relevante é a dificuldade com o conceito de permanência. Para algumas pessoas com TDAH ou autismo, aquilo que não está visível pode ser facilmente esquecido, fenômeno conhecido como object permanence deficit. Esse padrão se reflete em armários abarrotados, onde roupas esquecidas no fundo se perdem como se nunca tivessem existido (Brown, 2021). Daí surge o acúmulo de peças não apenas como ato de consumo, mas como forma de segurança, identidade ou até de conforto diante de um mundo imprevisível. No autismo, esse acúmulo também pode ocorrer, em função de rigidez comportamental, hiperfoco e tendência ao colecionismo de objetos (South et al., 2005).


Essas dinâmicas mostram como a moda, longe de ser apenas estética, toca profundamente em questões de saúde mental, identidade e funcionamento cerebral. O que para uns é apenas uma nova coleção pode, para outros, significar um campo de luta diária entre desejo, pertencimento e exaustão.


Repensar a moda a partir da neurodivergência é abrir um espaço mais humano e inclusivo. É entender que estilo não pode ser sinônimo de uniformidade, mas de diversidade. É acolher tecidos mais confortáveis, cortes que respeitem o corpo de cada um, marcas que dialoguem de forma autêntica e uma sociedade menos rígida com seus dress codes invisíveis. Vestir-se não deveria ser sobre se esconder, e sim sobre se revelar. No fim, a moda pode ser tanto prisão quanto liberdade. Para que ela seja o segundo, precisamos questionar os padrões e criar novas narrativas que permitam a todos, neurodivergentes ou não, se expressarem sem medo. Afinal, roupas não são apenas tecidos; são identidades em movimento.


Recomendações práticas para uma moda mais inclusiva e respeitosa 

  • Escolha tecidos que respeitem o corpo: fibras naturais, como algodão e linho, costumam ser mais leves e menos agressivas na textura. Cortar etiquetas ou preferir roupas sem costuras internas pode fazer toda a diferença no conforto diário.

  • Monte um guarda-roupa cápsula personalizado: em vez de acompanhar tendências efêmeras, aposte em poucas peças que realmente funcionem em diferentes ocasiões. Foque em funcionalidade e expressão. Isso reduz a sobrecarga de escolhas e evita o esquecimento de roupas no fundo do armário.

  • Organize de forma visual: se a dificuldade é com a permanência (o famoso “o que não está à vista não existe”), experimente araras abertas, caixas transparentes ou até fotografar looks prontos para lembrar do que já possui.

  • Aposte em estilo como identidade, não máscara: usar roupas para se proteger socialmente é compreensível, mas busque pequenos detalhes que expressem quem você é de verdade — seja um acessório, uma cor favorita ou um corte de roupa que valorize seu conforto.

  • Pratique o consumo consciente: antes de comprar, pergunte-se: “eu realmente vou usar essa peça em três situações diferentes?” Esse filtro ajuda a reduzir compras impulsivas motivadas pela busca dopaminérgica.

  • Encontre comunidades de moda inclusiva: redes sociais têm grupos de pessoas neurodivergentes compartilhando dicas de estilo, marcas sensoriais e experiências. Conectar-se a essas vozes pode ser libertador.

  • Faça terapia e trabalhe no seu autoconhecimento: descobrir quem você realmente é e o que gosta, fortalecer seu self, ajuda a combater dinâmicas como o masking, e permite que você se expresse de forma genuína.


[Artigo carinhosamente escrito por uma neurodivergente que repensa a moda da perspectiva atípica]


Referências

Brown, T. E. (2021). Attention Deficit Disorder: The Unfocused Mind in Children and Adults. Yale University Press.


Hull, L. et al. (2017). Camouflaging in autism: A systematic review. Journal of Autism and Developmental Disorders, 47(8), 2519–2534.


Robertson, C. E., & Baron-Cohen, S. (2017). Sensory perception in autism. Nature Reviews Neuroscience, 18(11), 671–684.


South, M., Ozonoff, S., & McMahon, W. M. (2005). Repetitive behavior profiles in Asperger syndrome and high-functioning autism. Journal of Autism and Developmental Disorders, 35(2), 145–158.


Wilens, T. E., & Spencer, T. J. (2010). Understanding attention-deficit/hyperactivity disorder from childhood to adulthood. Postgraduate Medicine, 122(5), 97–109.






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